O segundo e último dia do seminário “Subtração internacional de crianças: a experiência comparada dos países do sistema da common law” foi marcado por relatos emocionantes de pais e mães que tiveram seus filhos subtraídos. Os depoimentos (em vídeo) foram trazidos para o encontro por Alison Shalaby, presidente da ONG britânica Reunite International Child Abduction Centre, voltada para o apoio a pais e mães de crianças subtraídas.
Shalaby integrou o painel “Atuação das instituições de apoio às crianças subtraídas no Reino Unido e nos EUA”, junto com Orquidea Rivera (Family Advocacy) e Preston Findlay (Office of Legal Counsel), do Centro Nacional para Crianças desaparecidas e exploradas (EUA). O seminário, resultado da parceria entre o Tribunal Regional Federal da 5ª Região – TRF5, a Justiça Federal no Ceará (JFCE), a Embaixada Britânica no Brasil e as missões diplomáticas americana, canadense e australiana para o tema, começou ontem (23/03), no edifício-sede da JFCE, em Fortaleza, e terminou nesta sexta-feira (24).
Pelos relatos, foi possível dimensionar a tristeza dos familiares, chamados por Alison de “pais deixados para trás”. “A necessidade de ir para tribunais e ser confrontado por juízes traumatiza; já passei por tantas emoções que o tribunal impacta mais ainda”, disse um pai. “Adoeci fisicamente e fico revivendo tudo o que aconteceu”, contou outro. “Fico pensando que ninguém vai ajudar, preciso saber o que está acontecendo, mas, ao mesmo tempo, acho que estou atrapalhando (os profissionais envolvidos na solução do caso)”, declarou uma mãe. Shalaby assegurou que os familiares que buscam a ONG sempre chegam muito abalados emocional e psicologicamente.
De acordo com ela, 515 novos casos de subtração de crianças foram contabilizados em 2022, no Reino Unido. Destes, quatro são casos de crianças sequestradas do Reino Unido para o Brasil, num intervalo de quatro semanas. Ela revelou que pais e mães afetados chegam à ONG Reunite sem ideia do que fazer ou o do que é a Convenção de Haia. Para ela, em razão da Convenção, é fundamental que os países do mundo trabalhem no mesmo caminho, “falem a mesma língua”. “A mediação é uma forma de dar voz aos pais deixados para trás e encontrar um acordo entre as partes. Ao contrário do tribunal, que parece que você está indo para uma briga, a mediação é mais saudável e humanizada”, ponderou.
A dedicação de Shalaby à causa é consequência da sua experiência pessoal: sua filha foi levada para o Egito ainda criança e só voltou ao Reino Unido depois de uma longa batalha judicial. Em reconhecimento aos serviços prestados à sociedade, ela recebeu a medalha da Ordem do Império Britânico, concedida pela Rainha Elizabeth II, em 2013.
A apresentação de Orquidea Rivera confirmou a anterior: pessoas que passam por isso não voltam a ser a mesmas. “A criança que saiu de casa não vai ser a mesma que voltou, em questões mentais e comportamentais”. Segundo ela, na imaginação das crianças subtraídas só existem quatro possibilidades, às quais ela chamou de “4Ds”: dead, desinterest, danger, don’t know (morte, desinteresse, perigo, não sei).
O trabalho de Rivera consiste em auxiliar o retorno da criança para a casa habitual. “No momento do reencontro, buscamos fazer com que os pais pensem nas necessidades da criança, e não no processo que se passou, mesmo que eles ainda estejam com raiva daqueles que levaram a criança. Proporcionamos conexão entre diferentes famílias que passaram pelo sequestro de crianças através de retiros, para que os pais possam se conectar e compartilhar experiências, assim como as crianças que foram levadas”, explicou.
Em seguida, o representante da Conferência de Haia para a América Latina e Caribe, Ignacio Goyicoechea, palestrou sobre “A conferência da Haia de Direito Internacional Privado e a Convenção de 1996”. Goycoechea iniciou sua fala destacando os depoimentos trazidos por Shalaby: “mirada humana, que dá sentido ao que estamos debatendo”. Ele convocou todos os presentes ao evento, em razão dos trabalhos que desenvolvem, a “caminhar juntos e falar o mesmo idioma”, em prol do bem-estar das crianças subtraídas e das famílias. “Autoridades centrais, AGU, juízes, entre outros atores, precisam alinhadas suas ações”, defendeu.
Representações diplomáticas
O painel final foi sobre a “Atuação das representações diplomáticas brasileira e dos estados de língua inglesa na proteção da criança no âmbito da subtração internacional”, com o ministro André Veras Guimarães (diretor do Departamento de Imigração e Cooperação Jurídica – MRE), a ministra Conselheira Kimberly Kelly (Department of State – EUA), o cônsul Antonio Agnone (representante designado pelo Congresso dos EUA para assuntos relacionados à subtração internacional de menores) e Sneha Lala (gerente Consular da Unidade de Políticas para Crianças, do Reino Unido).
O ministro André Veras Guimarães informou que o Itamaraty trabalha auxiliando as Autoridades Centrais, em cooperação com a Rede de Juízes de Enlace, com o papel de fiscalizar a saída de crianças do Brasil com apenas um dos pais, de modo a garantir que ambos os pais autorizem eventual saída. Na ocasião, ele elogiou o Seminário: “essa inciativa também pode ser um ponto inicial de uma discussão importante para a Rede de Juízes, a respeito da necessidade de discutir aspectos da Convenção de Haia que parecem ter sido ultrapassados pelo tempo”
O cônsul Antonio Agnone destacou que cada vez que um juiz dos Estados Unidos decide pelo retorno de uma criança para o Brasil, ele está demonstrando a confiança que tem no sistema brasileiro.
Kimberly Kelly também apontou as marcas emocionais que essas situações deixam. “As crianças são a nossa prioridade, e aqueles soluços nos últimos minutos, que podem acontecer no aeroporto, podem ser muito incômodos para uma criança que já está instável no meio desse processo.”
Ao longo de dois dias (23 e 24/03/2023), o encontro reuniu cerca de 100 juízes brasileiros e estrangeiros, diplomatas, ministros, representantes de autoridades centrais brasileira e de países parceiros, além de instituições de apoio às crianças e às famílias, para compartilhar e trocar experiências e boas práticas na solução de casos. Todos os painéis e mesas de debates foram coordenados por desembargadores e desembargadoras federais do Brasil.
O evento foi encerrado pelo desembargador federal Guilherme Calmon (TRF2), que coordenou o Seminário juntamente com o desembargador federal Rogério Fialho Moreira, Juiz de Enlace para a Convenção de Haia na Justiça Federal da 5ª Região. Calmon agradeceu a todos os magistrados, magistradas, servidores e servidoras envolvidos na organização da programação científica, em especial à Escola de Magistratura Federal da 5ª Região (Esmafe).