A última edição de 2014 do jornal O POVO deu destaque a uma entrevista com o juiz federal Danilo Fontenelle Sampaio Cunha, titular da 11ª vara. O texto analisa um dos temas mais debatidos pelos brasileiros no ano que passou: a corrupção. As respostas do magistrado nos convidam a refletir sobre esse mal que assola nosso País.
Acompanhe na íntegra a entrevista :
O título acima sintetiza uma das principais lições aprendidas pelo juiz federal Danilo Fontenelle Sampaio, 49, o primeiro a comandar no Brasil uma vara especializada no combate à lavagem de dinheiro, crimes contra o sistema financeiro e outros delitos afins. É a 11ª da Justiça Federal no Ceará, criada em 2001, junto com outra em São Paulo.
Danilo Fontenelle é o autor da sentença da Operação Marambaia, que condenou 11 pessoas por envolvimento na liberação ilegal de licenças ambientais no Ceará, incluindo dirigentes do Ibama, da Semace, da Semam, além de professores universitários.
Habitualmente discreto, o juiz abriu exceção para uma conversa com O POVO. O ano finda tendo a corrupção como uma marca, que mais uma vez deixou o País nu. O escândalo da Petrobras revelado pela Operação Lava Jato mostra o profundo descompromisso de gestores com o patrimônio coletivo.
Para Danilo Fontenelle, a corrupção desumaniza. Reflete que, pautado para servir à população, o dirigente público que se descola do interesse coletivo, em nome de projetos particulares de poder e enriquecimento, perde a humanidade.
Do tempo que assumiu a 11ª Vara, o número de processos nunca arrefeceu. Contrário. Com o aperfeiçoamento dos mecanismos de controle, ficou mais eficiente chegar aos corruptos. Na entrevista que se segue, ele fala sobre a pedagogia da corrupção nas relações do dia a dia. Confira.
DANILO FONTENELLE
O POVO – O Brasil vive um momento especial no combate à corrupção ou estamos em só mais uma onda de escândalos?
Danilo Fontenelle Sampaio – Acho que sempre se combateu a corrupção. Talvez não tenha tido tanta repercussão como agora. Mas o dia a dia da Justiça Federal e do Ministério Público Federal é basicamente isso. São os crimes contra a União: corrupção, estelionato, lavagem de dinheiro e o crime organizado em si. Onde tem o crime organizado tem corrupção e lavagem. Se não tiver essas duas pilastras, o crime organizado não funciona. Mas a corrupção não é só de dinheiro, que é a mais comum. Tráfico de influência é corrupção, desídia é corrupção, o pouco caso é corrupção, a insensibilidade é corrupção. São muitos conceitos de corrupção.
OP – E por que no Brasil parece ser mais comum, embora não seja algo exclusivo daqui?
Danilo – Não sei qual foi o autor que disse que não existe sequer empresa que não tenha falha, roubo, apropriação; o que existe é empresa mal auditada. Pode fazer auditoria em qualquer empresa, até na casa da gente, que você vai encontrar falhas. Dependendo da intensidade dos governos, nessa linha da fiscalização, se tem maior ou menor descoberta. É só procurar que se encontra, em qualquer canto. Inclusive no Judiciário, que também não fica isento dessa macrocorrupção. Da desídia, da preguiça, do pouco caso, do juiz carreirista, do Ministério Público preguiçoso. Tem em todo canto. Por que o Brasil? Não sei nem se essa afirmação é exata.
OP – Mas há essa sensação.
Danilo – E é interessante que o mesmo sujeito que usa o “jeitinho” aqui, vai passar férias fora e se comporta bem direitinho. Não fura fila, não pula catraca, não joga lixo no chão. Acho que as pessoas são assim. Se você não tiver uma formação de caráter muito forte e estiver todo tempo se autorregulando, as pessoas cometem as falhas que puderem. Tem um filme bem interessante, chama O Senhor das Moscas, com versões de 1963 e 1994. Conta a história de um avião só com crianças inglesas que cai numa ilha. Só crianças.
O filme é interessante e deixa bem claro: são crianças educadas num dos melhores colégios ingleses. Daí começam as relações. Primeiro a relação democrática. Eles escolhem o líder, que é o Ralph. Tem crítica ao militarismo, à religião, a várias coisas. O Jack, é o outro menino, que sabe caçar. Ele diz: “Eu sei caçar, eu mato animais, então o chefe sou eu”. E toma o poder. Assim, o filme vai se desenvolvendo.
O que dá sentido, em outras perspectivas, é que se você não tiver uma legislação interiorizada, a exterior não resolve, as pessoas se corrompem. Onde tem poder tem corrupção. Quanto mais poder, maior possibilidade de corrupção. Tem sempre essa possibilidade. E as profissões também, e muito. Falo sobre Direito aos alunos e Direito é um curso de poder. Então, tem muita propensão a abuso de poder e a corrupção de poder. Em todas as esferas. A gente até fala que Direito é libertador, mas é perigoso.
OP – A legislação tem de ser interiorizada…
Danilo – É, passa pela educação. Alguns colégios em Fortaleza têm esse treinamento. Chama “O caráter conta”. É uma corrente que treina professores de colégios, para que em qualquer de suas matérias eles insiram um componente ético, de caráter. Isso é muito interessante. E vai formando esse espírito.
OP – Quando o filho vê o pai estacionando em fila dupla, em vaga de idoso ou de deficiente, ele passa a achar aquilo normal.
Danilo – Esses pequenos atos de corrupção vão quase dando uma justificação. Tudo é justificado, “é só um instantinho”, “é só desta vez”…
OP – Há uma pedagogia nos escândalos de corrupção?
Danilo – Quando as pessoas se aproximam da realidade que estão causando, quando elas sentem o efeito que estão causando, aí elas se reumanizam. Até hoje para mim é um mistério, não consigo entender como uma pessoa de classe média, que fez faculdade, conhece a pobreza e a necessidade das pessoas – digo um prefeito, um ex-prefeito, um médico – como o sujeito se apropria do dinheiro público. De uma cidade que não tem quase nada, mal tem. Tenho impressão que é uma desumanização que ele sofre, sei lá por quê. Até indago, para que serve a corrupção? O cara vai ter um carro melhor, uma casa melhor. Grande droga isso. Pra quê? Pra nada. O cara não se corrompe para salvar uma vida ou uma comunidade. É uma coisa egoísta, para o filho dele viajar para a Disney, para a mulher dele comprar em Miami. Uns valores que, tenho certeza, ele não aprendeu numa faculdade de Medicina. O cara, quando tem a oportunidade de fazer uma coisa melhor, ele se desumaniza. Parece que se desconecta da realidade e fica vivendo uma fantasia.
OP – Mas o que realmente o cidadão aprende vendo isso tudo?
Danilo – Acho que deve ser reforçado primeiramente que nada disso é natural. Não é natural a pobreza, o roubo, a apropriação. Isso não faz parte da natureza, faz parte do homem. E se foi feito pelo homem pode ser desfeito pelo homem. Fico preocupado é de tanto a gente ver, isso se tornar banal ou natural. Isso é comum, mas não é da natureza.
OP – Passa tudo a parecer banal, tudo na casa dos bilhões de reais…
Danilo – E aí o papel da imprensa é importantíssimo, de retomar a realidade. Só um desses acusados no escândalo da Petrobras se comprometeu a devolver R$ 260 milhões. Você imagina qualquer cidade do país recebendo esse dinheiro, pra educação, pra hospital, formação de professores, para o básico. R$ 260 milhões mudam a realidade de quantas mil pessoas? Aí um cara quer isso sozinho pra ele. E é um diretor de segunda categoria. Tem desvio demais. É aquela imagem da torneira pingando, pingando e esvaziando o negócio.
OP – O senhor falou que não há mais ou menos casos do que antigamente…
Danilo – Posso fazer um levantamento, mas, em 20 anos que atuo como juiz, nunca teve diminuição de processos.
OP – Do primeiro ano que o senhor sentou para ser julgador, e do que vê hoje, lembra de ter se assustado com algo que viu? O que mudou em relação ao que era julgado?
Danilo – Quando cheguei aqui, já fazia três anos que era procurador da República em Recife. Entrei em 1994. Então não me assustei muito porque já conhecia a realidade. Naquela época não havia algumas leis que hoje temos. A de lavagem de dinheiro, o sigilo bancário era regulado por outra legislação, não se tinha mais investigações porque não havia os meios legais. De lá pra cá o Brasil foi sofisticando sua legislação, mas porque assinou acordos internacionais. Não foi iniciativa nossa. O Brasil se obrigou perante a comunidade internacional a legislar sobre crime organizado, sobre lavagem, sobre evasão de divisas, de uma forma mais efetiva. Teve muita modificação por conta da legislação. Aí o Ministério Público e a Polícia Federal tiveram instrumentos legais para aprofundar.
OP – Mas houve a pressão internacional porque enxergam aqui que o nível maior de corrupção?
Danilo – Como o Brasil quer se credenciar como potência, as demais potências falam “você precisa ter isso, isso e isso”. Graus de controle, os bancos têm que comunicar as operações suspeitas, é coisa de dez anos pra cá. Então, pra se credenciar, o Brasil tem que fazer essa legislação. Aí começa a cavar. Mas em todo país tem. Eles obrigam aqui, mas também fazem.
OP – Um julgador enxerga níveis de gradação de um crime pra outro? Entre esses crimes existe uma escala?
Danilo – Sim. A legislação é uma só, mas a instrução processual é para cada caso específico. Por exemplo, o crime de peculato é o funcionário público, no exercício das funções e em razão delas, se apropriar do dinheiro público. Tem um caso que sempre cito em sala de aula e nunca vou esquecer. Peculato, a pena é altíssima, mínima de seis anos. É diferente você pegar um prefeito que se apropria de verba da educação. A motivação é egoística. Ele não tem necessidade pessoal do crime, não está passando uma necessidade específica para cometer. Se for particular, o mesmo crime chama apropriação indébita e as penas diferenciam.
OP – O senhor lembra de algum caso?
Danilo – Há uma história que cito nas aulas, de um servidor dos Correios. Muito tempo atrás, por conta da capilaridade, os Correios distribuíam tíquete de leite de um programa. Os Correios têm uma fiscalização muito forte, talvez seja uma das empresas brasileiras com fiscalização mais efetiva. Não têm nenhuma tolerância e, sem agendar, chegam para fiscalizar as agências. No caso específico, agência pequena, dois funcionários, cidadezinha do Interior. A fiscalização chegou e, na contagem do tíquete de leite, estava faltando. Perguntaram quem foi. Um dos dois funcionários disse “fui eu”. Demissão. Ele tinha 15 anos nos Correios, nenhuma falha, nenhuma falta, nenhuma repreensão. Por justa causa. O valor que ele se apropriou seria o equivalente hoje a cerca de mil reais. Além da queda, o coice: perdeu o emprego e virou réu num processo criminal. Ele confessou, se apropriou realmente. Chega aqui na audiência, os auditores dos Correios confirmam tudo. Pergunto se em 15 anos não haviam dado nenhuma suspensão ao funcionário, “doutor, nos Correios a gente trabalha com a confiança de que uma carta de 20 centavos vai chegar ao destino, não vai ser esquecida nem rasgada. Se perdeu a confiança, não tem outro jeito, é demissão”.
OP – O que chamou atenção do senhor foi só o rigor?
Danilo – O rigor, a circunstância, e a motivação. Quando o homem chegou na audiência, estava arrasado, você via a vergonha na feição. Eu perguntei se havia sido ele mesmo. “Doutor, fui eu e faria de novo”. Você fica chocado porque ninguém confessa de uma maneira tão forte. Como foi a história? “A história é a seguinte: eu tenho um filho de cinco anos. Ele estava com leucemia e o aniversário dele seria o último, eu sabia disso. Ele queria tal brinquedo, eu não tinha condições. Me apropriei mesmo, para comprar o brinquedo. E eu ia devolver. Só que a fiscalização chegou antes e me pegou”. Você já escutou tanta história assim que não acredita de primeira. Eu perguntei por que ele não pediu emprestado a um amigo. “Mas não tinha, meu filho estava em estado quase terminal, tinha que ser imediatamente, não sabia o que fazer, minha cabeça girou, o dinheiro estava ali. Me apropriei mesmo. E estão aqui as notas fiscais do brinquedo”. Ele guardou, tinha um recibo dele mesmo, apontando que tirou mil e ia devolver mil. “Tá aqui a foto do meu menino com o brinquedo no hospital e tá aqui o atestado de óbito”. Você vai condenar um cara desses?
OP – O senhor absolveu?
Danilo – Na hora. É a inexigibilidade de conduta diversa, que a gente chama. Ele falava chorando e mostrando. Faz uns 15 anos, mas nunca esqueci. Na hora, o procurador Geraldo Assunção também desistiu de tudo. Por conta disso, perdeu tudo, perdeu o emprego, perdeu o casamento, o filho. Foi a desgraça na vida do sujeito.
OP – Isso é exatamente o oposto do perfil do corrupto.
Danilo – Respondendo à pergunta anterior, muda muito a percepção da gente pela motivação do agente. Um não tinha motivação nenhuma, a não ser riqueza e egoísmo. O outro tinha todas as motivações do mundo, o filho doente terminal. No Direito Penal isso se chama inexigibilidade de conduta diversa. Pela situação específica, você compreende que ele não tinha outra saída a não ser aquilo. Inexigibilidade de conduta diversa ou estado de necessidade, são duas figuras do Direito Penal que permitem a absolvição. É uma compreensão humana.
OP – Qual o perfil do corrupto que o senhor julga?
Danilo – Tem uma figura chamada dissociação cognitiva, em psicologia. Não se sabe exatamente por que, mas a pessoa se desconecta da realidade e vive uma outra realidade, fantasiada por ele mesmo. Ao que parece, tem pessoas que são realmente seduzidas por um monte de coisas. Um bocado de besteira, na realidade. Importâncias ou pseudo-importâncias, cargos, salamaleques, rodas sociais, convescotes, patotas. Tem gente que se deixa encantar. É encantamento mesmo, porque literalmente passa, no caso de um prefeito, um deputado. Isso a dissociação cognitiva. Outra característica, ele não conhece os efeitos da ação dele ou não quer conhecer.
OP – É o caso do ex-prefeito que era médico?
Danilo – Sim. Médico, ex-prefeito, e desviou a verba de saneamento básico. Programa do governo de substituição de casas de taipa por casas de alvenaria, por conta da doença de Chagas. Eu perguntei: “Mas o senhor é médico? O senhor sabe que 85% das doenças da população mais carente é por água e esgoto. O senhor não sabe disso?”. “Não, eu sei, mas…”. E como consegue fazer um negócio desses? Aí diz que foi o secretário de obras, a empresa…Tem as desculpas. Ou ele não conhece ou não quer conhecer os efeitos. Ou então finge esquecer. Ou ele não conhece ou deveria conhecer a realidade daquele bairro. Então, dissocia, não quer conhecer a realidade e, terceiro, acha que é um crime sem vítimas. Num homicídio, você vê a vítima e a viúva chorando, o filho gritando. Na corrupção, ele não vê, ou não quer ver. É um crime impessoal, pegou dinheiro, não acabou com vidas, em tese. Ele não tem essa percepção. Aqui na Terra, o Direito não resolve tudo, apesar de gostar de parecer que resolva. Aqui pode ser que essas pessoas não sejam julgadas, mas em outro plano certamente vão ser. Não é possível que não sejam. Foi dada oportunidade da pessoa fazer um bem imenso, e ela faz um mal imenso, de alguma forma ela vai ser cobrada disso.
OP – Há uma sensação de que os corruptores, lá na frente, se safam. Na primeira instância são punidos, mas recorrem aos tribunais e conseguem reverter. A sensação é a da impunidade.
Danilo – A impressão que a gente tem, aqui da primeira instância, é que essa sensação de impunidade vai acabar quando o Ministério Público conseguir conjugar, e está tentando fazer isso, nesse novo grupo que o Ministério Público Federal está instalando em cada capital, para análise da corrupção. Esse mesmo grupo vai apresentar o fato criminal e o caso de improbidade. Porque o mesmo fato tem consequências criminais e cíveis. Pelo que a gente sabe, os políticos têm muito mais medo da improbidade, porque dá a inelegibilidade. E o efeito da sentença é mais imediato. A questão penal, não sei por quê, não os preocupam tanto assim. Talvez agora, que estão vendo as pessoas indo realmente para a cadeia, comecem a se preocupar.
OP – Mas a demora na investigação não reforça também a sensação de impunidade.
Danilo – Os órgãos de controle, os tribunais de contas (TCU, TCE e TCM) levam muito tempo para apurar essas falhas de licitação e aplicação de verbas públicas. Quando apura, começa o inquérito. Daqui que se chegue à sentença, passam-se anos. Na Justiça de 1º grau, não passa tanto tempo assim. A média que a gente está tendo na 11ª Vara, dependendo da complexidade do caso e número de réus, tem sido de seis meses. Os órgãos de fiscalização, talvez um pouco mais rápidos, melhor equipados, mais pessoal, e com um acompanhamento em tempo real das obras, e não posterior às obras ajudariam bastante. Passam três anos para fazer uma estrada, no quarto ano é que o TCU vai ver as contas? Mais dois anos para dizer que está incorreto. De quando? Seis anos atrás. É muito tempo. Aí não causa impacto ao sujeito. Para o corrupto, assim valeu a pena. Aí, aparentemente vai estimulando.
OP – Qual a sensação que o senhor tem quando julga um corrupto e a sentença é reformada?
Danilo – Posso estar equivocado, mas nunca tive uma sentença reformada por não ter ocorrido o fato. Eu apenei e o Tribunal dizer que a sentença está incorreta porque o fato não aconteceu. Nunca tive uma sentença reformada por nulidade ou absolvição pela inexistência do fato. A gente teve redução de pena e absolvição algumas vezes. Normalmente o Tribunal confirma, mas reduz a pena. Por que reduz? Não sei, é critério de cada julgador. Isso me afeta? Sinceramente, não. A gente consegue, com o passar do tempo, distinguir muito bem as competências. Dou a sentença e pronto, já não me pertence mais.
OP – O senhor acompanha quando um julgador se corrompe? Foi algo presente em 2014?
Danilo – Acho que toda profissão tem como fundamento de atuação duas coisas: a ciência e a consciência. A ciência, no sentido de saber tecnicamente a sua função. Mas tem que ter a consciência. Do que faz, do efeito da função, da responsabilidade social que tem. Quando a pessoa tem isso tudo, ciência e consciência, e se deixa mesmo assim corromper por uma questão tola de dinheiro ou de carreirismo? O sujeito é juiz e quer ser desembargador, é desembargador e quer ser ministro, é ministro e quer ser sei lá o quê. Um carreirismo de pura vaidade. Nem salário compensa, porque de juiz para desembargador, a diferença é de 10%, e de desembargador para ministro é de 5%. O jurista que se deixa corromper, seja por carreirismo, vaidade, dinheiro, para favorecer um grupo, pra mim é desprezível.
OP – O senhor fala de corrupção para seu filho?
Danilo – Falo. Ele é publicitário. Defendeu uma monografia com um tema sobre a representação das mulheres nos quadrinhos. Não tem nada a ver com Direito, mas tem uma consciência social bem ativa. Falo dos casos. Não consigo entender como as pessoas jovens se metem em cada roubada, de corrupção de vestibular, de garotos cooptados para fazerem provas por outros. Garotos da idade dele.
OP – 2014 foi um ano atípico nesses episódios de escândalos de corrupção?
Danilo – Se não tiver fiscalização intensa, vai ter todo ano. Não é a questão da oportunidade gerar o ladrão. O ladrão já está feito, só esperando a oportunidade. Enquanto ficarem nomeando pessoas para cargos técnicos, mas que não são técnicos, porque o critério tem sido político, aí facilita a corrupção. Tivemos casos aqui de pessoas que não eram funcionários de carreira, mas foram colocados em funções de fiscalização e autorização. Como nunca foram servidores públicos, não sabem diferenciar o interesse público do interesse privado. Continuam com as mesmas relações, as mesmas informalidades e contatos, aí podem se corromper de várias formas. Não é só por dinheiro, como disse. Inclusive o tráfico de influência, o coleguismo, a camaradagem. Num órgão de fiscalização, isso é inconcebível.
OP – Houve uso eleitoral no caso Petrobras, um vazamento supostamente seletivo de informações em meio a uma campanha para a Presidência da República?
Danilo – O uso político da notícia, as pessoas fazem como quiser. O processo que está sendo conduzido em 1º grau pelo doutor Sérgio Moro (do Paraná), não tenho a menor dúvida em dizer que não houve uso nenhum. Sérgio é colega nosso há muitos anos, de uma vara especializada (em crimes de lavagem) como a 11ª. Anualmente os juízes de varas de lavagem se reúnem para discutir experiências e ele foi sempre muito discreto e sereno, nunca teve arroubos assim.
OP – E o que deve ser aprimorado no Brasil nos crimes contra a corrupção?
Danilo – Tem uma ação, de um projeto antigo. É bem simples. O projeto de lei tem uns cinco artigos somente, que cria a ação civil de recuperação de ativos. Sem prejuízo da ação penal, a União entraria com ação civil contra o servidor público dizendo, por exemplo, “é incompatível essa Ferrari com o que você ganha”. O servidor terá que provar que tem dinheiro para comprar a Ferrari. A questão chama inversão do ônus da prova. A obrigação da prova é do Ministério Público, se o MP não provar o réu não precisa provar nada. Provar a culpa cabe ao Ministério Público. Nessa ação civil ocorreria a inversão. O funcionário público é que precisará provar que tem capacidade financeira – de herança, prêmio ou doação de parente – para ele ter aquele carro, casa, mansão. Se não provar, me dê. É uma recuperação de ativos imediata. Gera culpa na área cível, o que é mais interessante. Porque no penal há os milhões de recursos, o que é um excesso. Na ação civil, posso pegar o bem logo.
BASTIDORES
O juiz Danilo Fontenelle, além de doutorados em filosofia e sociologia do Direito (Coimbra e PUC-SP), é especialista em educação emocional e ecologia humana (UFF). Não é raro, por exemplo, recomendar filmes para os acusados, parentes ou condenados. Como fez ao exibir o documentário A Ira dos Anjos (Child of Rage) para um avô que foi condenado por abusar de uma neta
PERFIL
Além da Operação Marambaia, o juiz federal Danilo Fontenelle Sampaio, 49, atuou em casos de repercussão no País. Foi o responsável, por exemplo, pela condenação da quadrilha que planejou e executou o furto milionário ao Banco Central em Fortaleza, em agosto de 2005.
Considerado um magistrado rígido, Danilo Fontenelle também sentenciou funcionários públicos e donos de empreiteiras que se envolveram no Escândalo do Dnit. Foi ele quem julgou e condenou o doleiro Alex Ferreira Gomes, responsável pela lavagem de dinheiro para empresários e políticos do Ceará.
A Operação Arca de Noé, trabalho da Polícia Federal que atravessou o caminho do Jogo do Bicho no Ceará, é outro processo que passou pelas mãos do titular da 11ª Vara Federal.